Um dia de Merda
Texto de Luiz Fernando Veríssimo [23 agosto 2006]
Nota: para mais crónicas, ver Crônicas de Luís Fernando Veríssimo [ou ainda aqui FAEL CHRONICLES]
Aeroporto Santos Dumont, 15:30. Senti um
pequeno mal-estar causado por uma cólica intestinal, mas nada que uma urinada
ou uma barrigada não aliviasse. Mas, atrasado para chegar ao ônibus que me
levaria para o Galeão, de onde partiria o voo para Miami, resolvi segurar as
pontas. Afinal de contas são só uns 15 minutos de busão [autocarro]. “Chegando
lá, tenho tempo de sobra para dar aquela mijadinha esperta, tranquilo”. O avião
só sairia às 16:30.
Entrando no ônibus, sem sanitários, senti a
primeira contração e tomei consciência de que minha gravidez fecal chegara ao
nono mês e que faria um parto de cócoras assim que entrasse no banheiro do
aeroporto. Virei para o meu amigo que me acompanhava e, sutil, falei:
– “Cara, mal posso esperar para chegar na merda
do aeroporto porque preciso largar um barro”.
Nesse momento, senti um urubu beliscando minha
cueca, mas botei a força de vontade para trabalhar e segurei a onda. O ônibus
nem tinha começado a andar quando, para meu desespero, uma voz disse pelo alto-falante:
– “Senhoras e senhores, nossa viagem entre os
dois aeroportos levará em torno de 1 hora, devido às obras na pista”.
Aí o urubu ficou maluco querendo sair a qualquer
custo. Fiz um esforço hercúleo para segurar o trem da merda que estava para
chegar na estação ânus a qualquer momento. Suava em bicas.
Meu amigo percebeu e, como bom amigo que era,
aproveitou para tirar um sarro. O alívio provisório veio em forma de bolhas
estomacais, indicando que pelo menos por enquanto as coisas tinham-se
acomodado. Tentava-me distrair vendo TV, mas só conseguia pensar em um
banheiro, não com uma privada, mas com um vaso sanitário tão branco e tão limpo
que alguém poderia botar seu almoço nele. E o papel higiénico então: branco e
macio, com textura e perfume e, ops, senti um volume almofadado entre meu traseiro e
o assento do ônibus e percebi, consternado, que havia cagado. Um cocô sólido e
comprido daqueles que dão orgulho de pai ao seu autor. Daqueles que dá vontade
de ligar pros amigos e parentes e convidá-los a apreciar na privada. Tão
perfeita obra, dava pra expor em uma bienal. Mas sem dúvida, a situação tava
tensa. Olhei para o meu amigo, procurando um pouco de solidariedade, e
confessei sério:
– “Cara, caguei”.
Quando meu amigo parou de rir, uns cinco
minutos depois, aconselhou-me a relaxar, pois agora estava tudo sob controlo.
– “Que se dane, me limpo no aeroporto” –
pensei. “Pior que isso não fico”.
Mal o ônibus entrou em movimento, a cólica
recomeçou forte. Arregalei os olhos, segurei-me na cadeira, mas não pude evitar
e, sem muita cerimónia ou anunciação, veio a segunda leva de merda. Dessa vez,
como uma pasta morna. Foi merda para tudo que é lado, borrando, esquentando e
melando a bunda, cueca, barra da camisa, pernas, pantorrilha, calças, meias e
pés. E mais uma cólica anunciando mais merda, agora líquida, das que queimam o fiofó
do freguês ao sair rumo à liberdade. E depois um peido tipo bufa, que eu nem
tentei segurar, afinal de contas o que era um peidinho para quem já estava todo
cagado. Já o peido seguinte, foi do tipo que pesa. E me caguei pela quarta vez.
Lembrei de um amigo que certa vez estava com
tanta caganeira que resolveu botar ‘modess’ na cueca, mas colocou as linhas
adesivas viradas para cima e quando foi tirá-lo levou metade dos pêlos do rabo
junto. Mas era tarde demais para tal artifício absorvente. Tinha menstruado
tanta merda que nem uma bomba de
cisterna poderia me ajudar a limpar a sujeirada. Finalmente cheguei ao
aeroporto e, saindo apressado com passos curtinhos, supliquei ao meu amigo que
apanhasse minha mala no bagageiro do ônibus e a levasse ao sanitário do
aeroporto para que eu pudesse trocar de roupas. Corri ao banheiro e, entrando
de boxe em boxe, constatei a falta de papel higiênico em todos os cinco.
Olhei para cima e blasfemei:
– “Agora chega, né?”
Entrei no último, sem papel mesmo, e tirei a
roupa toda para analisar minha situação (que conclui como sendo o fundo do
poço) e esperar pela minha salvação, com roupas limpinhas e cheirosinhas e com
ela uma lufada de dignidade no meu dia.
Meu amigo entrou no banheiro com pressa, tinha
feito o “check-in” e ia correndo tentar segurar o voo. Jogou por cima do boxe o
cartão de embarque e uma maleta de mão e saiu antes de qualquer protesto de
minha parte. Ele tinha despachado a mala com roupas. Na mala de mão só tinha um
pulôver de gola “V”. A temperatura em Miami era de aproximadamente 35 graus.
Desesperado, comecei a analisar quais de minhas
roupas seriam, de algum modo, aproveitáveis. Minha cueca joguei no lixo. A
camisa era história. As calças estavam deploráveis e, assim como minhas meias,
mudaram de cor tingidas pela merda. Meus sapatos estavam nota 3, numa escala de
1 a 10. Teria que improvisar. A invenção é mãe da necessidade, então
transformei uma simples privada em uma magnífica máquina de lavar. Virei a
calça do lado avesso, segurei-a pela barra, e mergulhei a parte atingida na
água. Comecei a dar descarga até que o grosso da merda se desprendeu.
Estava pronto para embarcar. Saí do banheiro e
atravessei o aeroporto em direção ao portão de embarque trajando sapatos sem
meias, as calças do lado avesso e molhadas da cintura ao joelho (não exatamente
limpas) e o pulôver gola “V”, sem camisa. Mas caminhava com a dignidade de um
lorde.
Embarquei no avião, onde todos os passageiros
estavam esperando “O rapaz que estava no banheiro” e atravessei todo o corredor
até o meu assento, ao lado do meu amigo que sorria. A aeromoça se aproximou e
perguntou se precisava de algo. Eu cheguei a pensar em pedir 120 toalhinhas
perfumadas para disfarçar o cheiro de fossa transbordante e uma gilete para
cortar os pulsos, mas decidi não pedir:
– “Nada, obrigado. Eu só queria esquecer este
dia de merda!”